* Por Lito Cavalcanti
Terça-feira, 21 de fevereiro. É o dia do segundo teste da pré-temporada da Fórmula 1 – mas será que não se deve chamá-lo de primeiro? Se forem consideradas as características do circuito de Jerez, onde os novos carros deram suas primeiras voltas (e os Mercedes de 2011 suas últimas), as conclusões retiradas dos quatro dias foram muito poucas. E todas precisam ser confirmadas, algumas coisas exigem correções, e tudo deve ser feito nesses quatro dias em que os olhos do mundo automobilístico vão-se concentrar sobre Barcelona, uma pista de verdade.
Ou, pelo menos, uma em que são disputadas corridas válidas pelo Campeonato Mundial. Jerez não conta. Lá, o que vale é ver se os freios freiam, se os diversos outros sistema dos carros funcionam como devem. Principalmente os sistemas hidráulicos, que comandam tudo que se pode e deve acionar em um carro da F1 – por isso, esse tal sistema hidráulico é chamado, não muito criativamente, de coração dos carros. Sem ele, não se mudam marchas, os aceleradores não respondem, os carros não andam, enfim.
Com sua reta curta, seu asfalto altamente aderente, e portanto abrasivo, Jerez não permite avaliações reais, impede qualquer tentativa de desenvolvimento que venha a ser útil ao longo da temporada que se avizinha. Os engenheiros e técnicos que lá estavam quando lá se disputava o GP da Espanha, entre 1986 e 1997, revela que os acertos e regulagens necessários para que os carros andassem bem em Jerez não eram repetidos em mais nenhum circuito – de nada serviam. Atípica, a pista do sudoeste espanhol desperta nos carros uma forte, quase irremediável, tendência ao subesterço, a detestável derrapagem das rodas dianteiras.
Essa característica, porém, permite avaliar a capacidade de adaptação de cada piloto ao comportamento do carro. Mesmo que não aprecie essa tendência, um piloto deve, precisa se adaptar e tirar do carro o melhor que ele permite. A frase me foi dita há anos pelo amigo Gil de Ferran. Já despontando como futura estrela na hoje extinta F-3.000, Gil não se conformava com as queixas dos jovens brasileiros que davam seus primeiros passos no automobilismo da Inglaterra. Todos oriundos dos karts, não se conformavam quando seus carros saíam de frente. “Ora, se o carro sair de frente, mude seu jeito de guiar, adapte seu estilo, mude suas trajetórias, os pontos de entrada nas curvas, os momentos de reacelerar. Se está aqui para aprender, aprenda em vez de reclamar”.
Foram sete Grandes Prêmios em Jerez, cinco da Espanha e dois da Europa. Não por coincidência, entre seus vencedores só se vêem grandes nomes: Ayrton Senna, com Lotus-Renault em 1986 e McLaren-Honda em 89; Nigel Mansell com Williams-Honda em 87; Alain Prost com McLaren-Honda em 88 e Ferrari em 90; Michael Schumacher com Benetton-Ford em 94 e Mika Hakkinen com McLaren-Mercedes em 1997. Uma lista de dar água na boca dos que apreciam a fina arte de domar um carro que representa o supra-sumo da tecnologia automotiva. E convém lembrar que as primeiras vitórias de Senna e Prost, assim como a de Mansell, foram com os monstruosos motores de 1.500 centímetros cúbicos turbocomprimidos que geravam mais de 1.000 cavalos.
Isso numa época em que os pilotos não dispunham da ajuda da eletrônica para fazer por eles o difícil trabalho de acelerar o máximo possível, o mais cedo possível sem fazer com que as rodas traseiras perdessem tração e lançassem os carros em longas, desgastantes e perigosas derrapagens. Uma época em que os pilotos eram vistos como heróis, e era isso mesmo que eles eram. Mais do que enfrentar, amavam o risco de sua profissão. Riscos que eram enfatizados pela total ausência de regras que aumentassem a segurança.
Não que os pilotos atuais não mereçam respeito ou que sejam inferiores. Os grandes de uma época também o seriam em outros tempos. Mas que a Fórmula 1 mudou, isso não se pode negar. Ficou complexa, tecnológica, sofisticada. Por isso estes testes de Jerez pouco revelaram. Os carros ainda vão mudar muito. Alguns, radicalmente, outros de forma mais sutil. E não é porque um carro andou bem lá que um bom ano esteja garantido. Vocês se lembram quem, e com que carro, registrou o melhor tempo de 2011 em Jerez? Foi Rubens Barrichello, ao volante do Williams que marcou o pior ano da história da ex-gloriosa equipe de Sir Frank Williams e Patrick Head, um dos mais respeitados engenheiros que já passou pela Fórmula 1.
Por isso, é preciso manter olhos e mente abertos nos testes que se iniciam nesta terça-feira em Barcelona. Será que o Lotus preto e dourado que brilhou nas mãos de Kimi Raikkonen e Romain Grosjean é mesmo tudo que prometeu em Jerez? Lá, o finlandês, a despeito de estar ainda executando os primeiros movimentos dessa sua volta à categoria, marcou o melhor tempo; seu companheiro Grosjean fez a volta mais rápida dos quatro dias entre os carros de 2012. Só foi superado por Nico Rosberg, que andou com o Mercedes 2011 equipado com o difusor aerodinâmico, que já foi banido pelas regras atuais. A vantagem proporcionada pelo difusor, orçada em mais de um segundo, era tanta que Rosberg passou o novo Red Bull com enorme facilidade; e olha que sua vítima, Sebastian Vettel, vinha registrando naquele momento, tempos animadores. E, ao fim do dia, disse que o novo fruto da criatividade de Adrian Newey parece muito promissor.
A esperança da Lotus é que esses bons resultados vieram sem que seus engenheiros e pilotos tenham procurado um acerto específico para Jerez. Vêem nisso um sinal de que o carro já nasceu bom, bem equilibrado. O mesmo se deu com o novo Toro Rosso. Isso, porém, precisa ser confirmado em Barcelona, uma pista em que os carros são muito mais solicitados em todos seus detalhes. Velocidade final, estabilidade nas freadas e comportamento nas curvas são avaliados de forma mais real. E andar bem em Barcelona, aí sim, traz esperanças mais realistas de um ano potencialmente positivo.
Ao contrário do grande público, que só deu importância os degraus que agridem o senso estético de quem vê pela primeira vez os novos F1 (e mais nada, já que a aerodinâmica se manifesta na parte debaixo do carro, não na de cima), os iniciados vão prestar muito mais atenção na parte traseira do que na frente. É lá que estão sendo garimpadas soluções que amenizem a perda de aderência provocada pela proibição de utilizar os gases dos escapamentos para ganhar pressão aerodinâmica. As regras são claras, delimitam claramente o posicionamento e a forma da parte final dos canos de escape – mas as equipes insistem em procurar uma solução para o problema. Red Bull e Toro Rosso parecem usar os triângulos de suspensão como defletores para direcionar os gases vindos de seus motores na direção do difusor.
Se a FIA pode ditar o posicionamento e a extensão dos terminais de descarga, não pode evitar que soluções inesperadas e extremadas proliferem. Se funcionarem, devem ser adotadas pelas equipes adversárias caso sua eficiência venha a ser comprovada – mesmo que exijam a utilização de caros e pesados materiais antitérmicos para evitar danos às suspensões e asas traseiras. Charles Whiting, que como diretor de provas é também o encarregado da primeira verificação técnica dos carros, se disse satisfeito após visita a Jerez – mas não excluiu a possibilidade de protestos oficiais por parte das outras equipes no primeiro GP do ano, o da Austrália.
Mas isso é assunto para depois. Agora, o que interessa é aprimorar ou corrigir os carros. O box mais observado será, indubitavelmente, o da Ferrari. Seus tempos não estiveram entre os melhores em Jerez. Para muitos, isso foi um sinal de que mais um ano de sofrimento vem aí. Não se pode dizer que sim nem que não. Por ser um projeto inteiramente novo, da frente à traseira, é necessário tempo para tirar dele todo seu potencial – e até mesmo para entender seu funcionamento. Muitas vezes, os sistemas trabalham perfeitamente quando acionados individualmente, mas pode demorar para que, em conjunto, se mostrem eficientes.
Como prometido, nos novos carros de Maranello as mudanças abrangem praticamente tudo: suspensões dianteiras e traseiras, caixa de direção e servoassistência, caixa de câmbio, distância entre eixos, distribuição de pesos e por aí afora. Sem contar que a Pirelli também mudou a construção dos pneus, tornando-os mais macios. O que também melhora a aderência e reduz a durabilidade. Tudo somado, os pilotos têm de reaprender a utilizar os pneus. Mas uma certeza positiva a Ferrari já tem: o novo carro corrigiu a enorme dificuldade de aquecer os pneus que tanto atrapalhou a Casa de Maranello em 2011. Tanto Felipe Massa quanto Fernando Alonso comemoraram, já em Jerez, a possibilidade de andar forte já na primeira volta lançada. Isso significa poder lutar pelas primeiras filas do grid de cada Grande Prêmio, algo impossível no ano passado. Vale lembrar que, quando não se larga entre os quatro primeiros, as chances de vitória se reduzem a quase nada.
Mas o que mais foi comentado do carro de Maranello se prende aos canos de descarga. Pelas novas regras, eles devem ser visíveis. Assim como no novo McLaren, eles só podem ser vistos por trás, e assim mesmo em um certo ângulo. Nos carros vermelhos, eles direcionam os gases para a asa traseira; nos prateados, para baixo do assoalho, na direção do difusor. Ambos tiveram dificuldades com aquecimento excessivo. Na Ferrari, nas carenagens, que foram recortadas e remodeladas. Na McLaren, no assoalho, onde o calor excessivo fez surgirem bolhas na fibra de carbono de que é feito.
Mas nem por isso se viram sinais de desespero nos rostos de Jenson Button ou Lewis Hamilton. Ao contrário, se mostraram animados com a extensa quilometragem registrada, no que se ombrearam com a Williams, outra a acumular quilômetros e não mostrar o desempenho desejável. Claro que para ganhar pontos, os carros têm de chegar ao fim das corridas. Mas isso só garante, se é que garante, que o carro chegue mais perto do 10º lugar do que das principais posições.
A propósito do assunto, enquanto esperava a correção de um problema técnico em seu novo Red Bull, Sebastian Vettel recorreu a um dos mais usados chavões da F1: “é mais fácil fazer um carro veloz se tornar resistente do que fazer um resistente se tornar veloz”. A tradição dá razão ao ditado, mas há exceções. Além disso, não é por terem se mostrado resistentes que McLaren e Williams serão necessariamente lentos – mas é inegável que haja uma forte suspeita nesse sentido.
Outro centro das atenções será o novo carro da Mercedes. Quem o viu, mesmo que de relance, adverte que não há nele nada de excepcional ou inovador – o que seria até normal em um projeto de Ross Brawn, Geoff Willys e Aldo Costa. Pragmáticos, deles se espera um carro conservador, mas altamente eficiente. Mas essa expectativa não é compartilhada por Michael Schumacher. A estrela da companhia diz que, considerando o desempenho do ano passado, em que a estrela de três pontas se manteve confortavelmente à frente do pelotão intermediário, ficou também constrangedoramente distante das três grandes, Red Bull, McLaren e Ferrari.
Pouco se sabe do novo Mercedes. Apenas que é o carro com maior distância entre eixos deste ano. Escaldados pelo carro curtíssimo de 2011, Brawn certamente encomendou a Costa e Willys o oposto. Fala-se em um novo e aprimorado duto frontal aerodinâmico, recurso tentado com resultados pouco conclusivos no ano passado. Se fosse realmente tão eficiente, todas outras equipes já o teriam incorporado a seus projetos; o fato disso não ter acontecido revela claramente que as dúvidas sobre esse recurso são maiores que as certezas. Mas a equipe anglo/alemã tem a seu favor a enorme experiência de seus dirigentes. Que, por sinal, a levou a Jerez com o carro do ano passado apenas para avaliar as diferenças dos Pirelli de 2011 para os de 2012. Hoje, nenhuma outra equipe tem tantos dados comparativos para otimizar o uso dos pneus como a Mercedes. Coisa de um trio sem dúvida conservador, mas altamente respeitável como Brawn, Willys e Costa. Sem falar em um certo Michael...
Seja como for, começa nesta terça-feira o segundo período de testes da pré-temporada. A meteorologia prevê temperaturas muito baixas, como já ocorreu em Jerez. Frio é ruim para a F1, dificulta as avaliações, contamina os resultados, inviabiliza a busca de novos acertos. Mas ajuda as equipes com menores recursos, assim como a proibição do uso dos gases de descarga na obtenção de maior pressão aerodinâmica, uma ciência altamente dispendiosa. Sem os difusores aerodinâmicos e com menores chances de aproveitamento dos testes de pré-temporada, melhoram as chances das equipes menores. O que pode redundar em grids mais apertados e disputas mais próximas pelo menos na fase inicial do campeonato.
Seja como for, já há no ar que a sensação de que a Fórmula 1 está de volta. E prometendo um 2012 bem mais disputado do que foi 2011.
Feliz ano novo!!!