Final de semana: Aos goles de muito nescau e farinha láctea mais uma manhã de domingo começava. Meu pai customeiramente me acordava e entre escaladas nas costas e deitadas no colo, mais uma largada iria acontecer.
- Pai, que lugar o Senna vai largar?
- Qual você acha filhão?
- Primeiro né?!
- Isso aí. Agora desce das costas do papai que vai começar.
Silêncio.
A corrida começa. O importante era saber se o capacete amarelo estava em primeiro. O resto, oras, era o resto. E assim foi desde 1988. Começo a pegar gosto pela coisa. Ganho de aniversário um autorama. Aqueles da Estrela que vinham com a Lotus do Émerson. Porém era o tipo do presente que foi se passando de geração para geração. Ao chegar na minha vez, a pobre Lotus já merecia ser aposentada. Ok. Próximo aniversário era simples. O carrinho de autorama dele. Não tinha problema ser só um. Afinal de contas, ele sempre ganharia como de costume.
1992. Meu pai chega do serviço com um cartão magnético Azul e Cinza. Nele estava escrito "Setor A". Havia aprendido a ler fazia pouco tempo. Mas a felicidade não estava em identificar o "Setor A". E sim, as letrinhas que estavam posicionadas em outro ponto do cartão: F1. Veria-o ao vivo, a alguns metros de mim. Iria apenas ao treino, já que o ingresso era emprestado pois o dono não poderia ir no sábado. Não tinha problema. O capacete amarelo iria passar por mim. E assim foi. Era ele voltar para os boxes e não aguentava mais aquele barulho ensurdecedor e queria ir embora. Era ele voltar para a pista, e o barulho se tornava melodia e não queria ir embora.
Até que aquele domingo chegou. Os goles de Nescau ainda aconteciam, quando entre a porta da sala e da cozinha com o copo na mão vi a cena. Silêncio. Mais silêncio.
- Pai, que aconteceu?
- O Senna bateu forte.
- Ah, que droga!!! Bom, pelo menos a próxima é em Mônaco. Lá ele não perde.
- É filhão, é... (com um tom de voz que nunca havia ouvido)
Hora do almoço. Fiquei encabulado. Tom de voz que nunca tinha ouvido, aquela poça vermelha. O helicóptero. Estava preocupado.
- Pai, vai ficar tudo bem com ele né?
- Papai do Céu sabe o que faz meu filho...
- Como assim?
- Um dia você vai entender... Vamos, pega suas coisas que eu e sua mãe temos algumas coisas para resolver e você vai ficar na sua avó com os seus primos.
- Tá.
Aquela frase não saiu da minha cabeça. Até que durante a rodada do futebol é anunciado. Não sabia o que fazer. Queria meu pai, só meu pai e ninguém mais. Só ele iria conseguir me entender. Mas só tinha minha avó para me consolar. Choro, choro e mais choro. Oração. E a mesma frase vem de novo... "Papai do Céu sabe o que faz meu filho..." porém agora da minha avó.
Quando meu pai chega, abraço ele e pergunto quando o nosso campeão vai voltar a correr. Precisava ouvir do meu pai, daquele que me ensinou tudo. Não era possível. Mas era verdade.
- Filhão, agora ele vai correr lá em cima. O Papai do Céu quer assisti-lo correndo em outro tipo de pista.
E assim para mim continua até hoje. O baque demorou um tempo a passar e ainda hoje as emoções persistem em vir à tona hora ou outra.
Vai-se o homem. Fica o mito. Institui-se o herói. E até hoje, a única coisa que posso dizer é: VALEU SENNA!!! Por cinquenta vezes, obrigado!!!
Ps: Talvez demore outros 50 anos para eu entender aquela frase dita pelo meu pai e minha avó.
3 comentários:
quem sabe daqui uns 50 anos eu tb consiga digerir esse baque por completo!!!
É, por vezes me pego pensando e parece mentira o que aconteceu!
As vezes não aceito.
Pra quem era mais novo, pode até ser mais fácil, mas pra quem já era "grandinho" e acompanhou toda sua carreira, todas suas corridas, é muito difícil! Principalmente quando comparamos com a F-1 atual, bate até um desânimo...
Demorará outros 50 anos, demorará o tempo que for necessário, mas quem o viu correndo e acelerando, jamais vai esquecer aqueles domingos de vitória e aquele domingo de muita tristeza.
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