* Por Lito Cavalcanti
Quando foi dada a bandeirada final, tive uma certeza inabalável: pintou o campeão de 2012. Depois da exibição magnífica de velocidade, destreza e astúcia pelas ruas da marina de Valência, já não há como alimentar dúvidas: é ele o campeão. Só resta agora definir quem é esse “ele”. Tem horas que eu acho que é o Fernando Alonso. Com aquela sorte, sem diminuir o talento e a astúcia, tendo a achar que só vai dar ele. Mas aí me lembro do que fez o Sebastian Vettel com o novo carro da Red Bull e passo a ter certeza de que ninguém, mas ninguém mesmo, vai segurar o alemãozinho daqui para a frente.
Vamos por partes, comecemos pelo começo. Era um carro praticamente novo. A suspensão traseira, incluídas as mangas de eixo, eram novas; o assoalho também; as laterais, acima de tudo as saídas dos canos de escapamento, idem. Perguntado se era uma versão B do Red Bull RB8, um engenheiro riu e emendou de primeira: “Não, é uma versão D”. Tudo bem, todo carro novo exige desenvolvimento, então seria lógico esperar que o novo Red Bull melhorasse a cada sessão de treino. Mas no qualifying foi demais. O início foi discreto: 14º no Q1 com 1min39s626. Já no Q2, a coisa começou a melhorar, quarto tempo com 1min38s530, um ganho de 10 colocações e, principalmente, de 1s096. Só os Lotus de Romain Grosjean e Kimi Raikkonen, ambos cotados como fortes candidatos à vitória, haviam mostrado evolução próxima disso.
Mas até aquele momento, por mais que Vettel houvesse evoluído, não se podia imaginar o que ele faria no Q3. E ele, pelo que se viu, tinha certeza de que andaria bem. Deu apenas uma volta lançada, e quando o cronômetro parou, eu mal acreditava no que vi: 1min38s086, 324 milésimos à frente do Lewis Hamilton. Que a esta altura, devia estar agradecendo a Deus os problemas que relegaram Mark Webber ao 19º lugar, porque se não fosse pelos problemas elétricos que limitaram a quatro voltas sua participação no treino livre daquela manhã, certamente teria mais um Red Bull à sua frente. Ora, se Vettel havia melhorado 1s540 do Q1 ao Q3, o que esperar da corrida?
Bem, qualify é qualify e corrida é corrida, duas situações sempre diferentes. Num, se trata de fazer a melhor volta possível, na outra é preciso bem mais. São voltas atrás de voltas, e acima de tudo é preciso cuidar dos pneus. Bastava uma breve consulta ao que aconteceu no GP do Canadá, duas semanas antes, para ver que, bem, talvez aquela velocidade toda não significasse favoritismo. Afinal, Hamilton largando em segundo, depois da vitória avassaladora na Ilha de Nôtre Dame, e os dois Lotus em quarto e quinto, logo eles que tratam tão bem seus pneus, talvez pudessem dar um fim a todo aquele furor que se seguiu ao qualify.
E ainda tinha a história do oitavo vencedor diferente. O universo torcia por um novo ganhador. As simpatias convergiam para o promissor Romain Grosjean, um piloto rápido, ousado, capaz de superar seu companheiro campeão do mundo qualify após qualify. Oito vencedores em oito corridas, era tudo que se podia esperar para tornar ainda mais espetacular este tão espetacular campeonato. Hamilton, de fato, tinha se mostrado capaz de atrapalhar os planos, mas a McLaren sempre se mostra ainda mais capaz de atrapalhar seus pilotos.
Ao chegar a Valência, o ex-Williams Sam Michael, agora diretor esportivo da McLaren, exalava confiança. Dizia para quem quisesse ouvir que seus mecânicos quebrariam todos os recordes de trocas de pneus, que eles estavam hipertreinados, que todos os sistemas e procedimentos foram minuciosamente vistos, revistos, aperfeiçoados e melhorados. De fato, na primeira parada de Hamilton, com pneus trocados em 2s6, um novo recorde foi estabelecido e o piloto voltou à pista em 19s355; na segunda, o carro de Hamilton bateu no dispositivo que abaixa o macaco e o carro caiu, um mecânico se cortou na lateral do aerofólio e o tempo total chegou a infindáveis 31s081. Não seria desta vez...
De Alonso ninguém cogitava. Sem chegar ao Q3, o espanhol parecia fadado a uma corrida triste, daquelas em que chegar entre os cinco ou seis primeiros já surgia como uma façanha das menos prováveis. Ultrapassar em Valência, já se sabe, é quase impossível. Principalmente com tamanho déficit de velocidade máxima. No qualify, ele havia sido apenas o 16º neste quesito, registrando 312,6 quilômetros por hora no ponto de medição, colocado 130 metros antes da curva Um. O mais rápido havia sido o Toro Rosso de Jean-Eric Vergne, com 321,6. Só mesmo um milagre.
E não é que vieram os milagres? Sim, no plural, porque um só não bastaria. Primeira volta, o espanhol já surge em oitavo. Ganhou nada menos de três posições ao frear e percorrer por fora a curva Três, superando Jenson Button, Paul di Resta e Nico Rosberg. Chegou a sexto na 12ª volta, passando o Nico Hulkenberg, e na 14ª volta, quando chegou sua vez de trocar os pneus, já tinha chegado a terceiro. À frente dele, só Vettel e Grosjean. Mas como ambos só parariam uma volta mais tarde, me veio a certeza de que, por mais talentoso que seja, Alonso ficaria por ali mesmo. O que já era muito para quem havia largado em 11º.
Mas ao talento se uniu a sorte. Foi quando Vergne achou que já tinha passado pelo Caterham do Kovalainen e jogou seu carro para o lado direito. Não tinha passado, a colisão foi inevitável. Safety Car na pista e lá se vai a vantagem do Vettel, que já era enorme. Na relargada, mais uma vez o talento se manifestou e Alonso, reagindo mais rápido, tomou o segundo lugar de Grosjean. Mas a sorte do espanhol e o sofrimento do alemão ainda não haviam se esgotado. Na 33ª volta, eis que Vettel encosta ao lado do muro e desce do carro, promovendo o espanhol a um segundo lugar absolutamente imprevisível.
Ainda restava Grosjean, e o francês não estava acabado. Tinha a seu favor o menor gasto de pneus e a temperatura escaldante, que agiria contra a Ferrari como já fizera no Canadá. Lembram? Lá, Alonso liderava a sete volta do final e terminou em quinto. Por que não agora? Ora, porque não. Simplesmente porque não. Talvez por causa das voltas atrás o Safety Car, que sempre aumenta as temperaturas do motor e de todos componentes dos carros de competição, Grosjean viu seu motor Renault morrer, exatamente como pouco antes ocorrera com o motor Renault de Vettel.
O diagnóstico inicial era inequívoco: ambos os alternadores tinham parado de funcionar e deixado os carros sem corrente elétrica. Especulações apontavam diretamente na direção das voltas atrás do Safety Car. Menos velocidade significa menos ar se deslocando através das entranhas dos carros, o que redunda em temperaturas subindo e, inevitavelmente, alguns sistemas entrando em colapso. Será? Difícil acreditar. Todos componentes e acessórios dos motores da Fórmula 1, sejam eles quais forem, são submetidos a testes os mais intensos, até exagerados. E por quê, depois de tantos Safety Cars ao longo do ano, somente agora isso ocorreria? Ora, por causa dos muros, que restringem ainda mais a circulação do ar tão precioso.
É, faz sentido. O que não faz sentido é um piloto que não dirige o melhor carro do grid largar em 11º e chegar em primeiro. Quem faz isso tem tudo para ser o campeão – inclusive a sorte. E Vettel, que tem de longe o melhor carro com esta nova versão do Red Bull? Bem, carro ele tem, mas e a sorte? Onde está a sorte? E quem acha que ela não existe nem influencia os resultados das corridas, que não se limite aos exemplos de Alonso, Vettel e Grosjean.
Que olhe também a corrida de Felipe Massa. No grid, alinhou na cola de Alonso depois de ficar a apenas 0s073 de Alonso – no Q1, tinha sido 0s021 mais rápido. Acompanhou o ritmo de Alonso nas voltas iniciais, mas na oitava um detrito se prendeu a seu aerofólio traseiro e lhe tirou pressão aerodinâmica. Antecipou a troca de pneus e, quando voltou, se embolou com Pastor Maldonado e Hulkenberg e se manteve à frente de Michael Schumacher e Mark Webber –tinha portanto ótimas chances de chegar em ótima posição. Mas aí teve a entrada do Safety Car logo depois de sua segunda parada, a batida que levou de Kamui Kobayashi e, na terceira parada, as trapalhadas dos mecânicos, que chegaram a colocar em seu carro três pneus médios e um macio. Haja má sorte, como reconheceu, em coro, toda a cúpula da Ferrari. Que, aliás, no momento apregoa ao mundo que o quer por lá em 2013...
Pelo menos isso. O que faltou a Massa nesta corrida foi mesmo sorte. Ele e seu engenheiro fizeram o carro evoluir a partir do momento que puderam desenvolver um acerto próprio. Amolecer as suspensões dianteiras, antes reguladas com a dureza que Alonso aprecia e Massa detesta, e endurecer a traseira foi o passo inicial na busca de equilíbrio melhor. Agora, a fase já é de refinamento do acerto, e os tempos já estão aparecendo. Mas ainda falta sorte para ajudar nos resultados finais.
Outro que não foi abençoado pela sorte foi Bruno Senna – mas entre ele e Massa há uma diferença enorme. Enquanto o brasileiro da Ferrari começa a registrar tempos similares aos de seu companheiro, o mesmo não ocorre com o da Williams. Em Valência, Maldonado largou em terceiro, com 1min38s475; Bruno, que ficou no Q2 e foi o 14º no grid, fez 1min39s207. Naquela mesma sessão, Maldonado marcou 1min38s616 mais de meio segundo na mesma sessão é muito, é demais. Mas é bom lembrar que convém debitar pelo menos parte desta enorme diferença ao prejuízo que lhe traz ficar fora da primeira sessão de treinos para que o finlandês Valteri Bottas aprenda os segredos da Fórmula 1.
Se perde tanto nos qualifies, nas corridas Bruno reage e obtém resultados melhores. Pelos tempos e pelas companhias com que andou, ele também pode pensar que, não fosse pela precipitação (mais de Kobayashi do que dele), teria muito provavelmente levado para casa um bom número de pontos. Quem sabe em Silverstone, pista que conhece tão bem desde os tempos da Fórmula 3 inglesa? Lá, os pneus serão os macios e os duros, os mesmos usados em Barcelona, onde Maldonado deu à Williams a mais inesperada vitória deste ano.
Mas talvez ainda lhe falte experiência. Que, misturada com a sorte, levou três campeões ao pódio de Valência: Alonso, Raikkonen e Schumacher, exatamente os mesmos que compuseram o de Barcelona 2006, a primeira vitória do espanhol em solo pátrio. A diferença foi que, naquele ano, Kimi foi terceiro e Schummy, segundo. Naquele tempo, também, um terceiro lugar dificilmente seria comemorado pelo alemão como foi desta vez. Não sem razão. Fazia 66 meses que ele não via o mundo de cima.
Para completar a festa, lá estava também o engenheiro Andrea Stella, que trabalhou com Kimi e Schummy quando eles passaram pela Ferrari. Agora, trabalha com Alonso. Deve estar gostando mais desta fase atual. Afinal, antes ele não podia dificultar o entendimento de suas conversas com seu piloto pelas outras equipes. Agora, pode. Basta falar em italiano, idioma que Alonso domina desde seus tempos de kartista. Já deve estar imaginando a hora que vai dizer “Auguri, Fernando. Sei campione. Tre volte campione”. Mas nesta hora ele provavelmente vai preferir falar em inglês. Que é para o mundo todo entender.
Mas e se o azar que vitimou Vettel em Valência não se repetir? Com aquele carro, pode ser ele o campeão. Aí vai ser o Christian Horner que vai mandar “Congrats, Sebastian, you are the Champion. Three times Champion”.
Eu confesso que não sei quem vai dizer o quê, mas acho que vou gostar de ouvir, seja lá quem for.
Não dá para encerrar estas mal traçadas linhas sem citar duas coisinhas. Primeira delas: o fim de semana exemplar de Luiz Razia. Sensacional, espetacular, brilhante. Sabem que, no sábado, ele também largou em 11º? E a ultrapassagem sobre o James Calado e o Fabio Leimer na última volta acrescenta ousadia e talento a uma temporada em que ele já vinha demonstrando enorme inteligência tática e autocontrole. Para mim, foi a melhor coisa que vi em termos de automobilismo neste ano – que não é um ano qualquer. Não há dúvida de que Razia está pronto para a Fórmula 1. Nem de que a Fórmula 1 já sabe disso.
A outra: neste próximo fim de semana, mais especificamente no sábado, o Conselho Mundial da FIA se reúne para, enfim, estabelecer limites de gastos para as equipes. Já há um pacto entre as equipes, mas por não ter força de lei, ele é constantemente e impunemente desrespeitado pela Red Bull. Por isso a entidade presidida por Jean Todt tomará a si a tarefa de vigiar as despesas. Para evitar que tudo seja decidido pela FIA, as equipes se reuniram para formalizar algumas sugestões. A melhor proposta a que chegaram foi a de banir os aquecedores de pneus. Que todo mundo já tem...
Depois, reclamam que a FIA quer mandar em tudo. Pode isso?
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