segunda-feira, 17 de setembro de 2012

A MORTE DO AUTOMOBILISMO*

* Por Flávio Gomes


Hoje é sábado e não tem nada muito interessante na cidade. Não tem virada cultural, nem micareta. Não foi feriado ontem, nem será segunda. Não há decisão nenhuma de campeonato de futebol, nem inauguração de shopping. Nenhum grande comício está marcado para lugar algum. Não há previsão de estreia de algum blockbuster no cinema. As Casas Bahia não agendaram nenhuma grande liquidação. Estamos longe do Natal e o movimento da 25 de Março é normal. Não é ano de Copa do Mundo e o Brasil não joga hoje. Não há crise econômica e está todo mundo bem de grana. Não está frio, nem calor. Não chove, não venta, faz sol. O dia está lindo. O trânsito está bom.

Há, em Interlagos, uma corrida de seis horas de duração, que nem é tanto tempo assim. Antigamente, faziam por aqui 12 horas, 24 horas, Mil Milhas varando a noite e a madrugada. No caso da corrida de hoje, serão seis horas sem grandes problemas, num dia ensolarado e gostoso. E, na pista, os carros de corrida mais espetaculares do mundo. Um programão.

E não tem ninguém no autódromo. As fotos acima foram feitas ao final da primeira hora da corrida. Lá no Setor A, as arquibancadas de concreto descobertas, tem um pouquinho mais de gente. Um tiquinho só. Sou especialista em público em eventos esportivos. Rato de estádio, sabem como é? Não tem 3 mil pessoas nas arquibancadas de Interlagos. Com boa vontade, 5 mil contando as pessoas que estão no paddock, como convidados ou tendo pagado ingresso.

Os organizadores dirão que foi um sucesso e que vendeu muito mais. Os discursos serão otimistas e ninguém terá coragem de admitir que o evento, em termos populares, foi um fracasso. Sinceramente? Não me importa quem vai mentir para quem, e quem vai acreditar e fingir que nada está acontecendo. O que estou escrevendo está longe de ser uma crítica aos organizadores. A corrida é uma graça, uma delícia, um encanto. OK, se não tem montanha-russa ou cinema 3D, se as atrações são modestas, se os preços dos souvenirs são absurdos (150 paus um boné é para enfiar o dedo no rabo e rasgar), nada disso pode ser usado como explicação para o público irrelevante. Fez-se o que era possível. E estamos falando de uma corrida de carros. O principal está aqui: grandes carros, grandes pilotos. Um espetáculo maravilhoso. “Ah, não teve divulgação!”, dirá alguém. Ora, ora… Emerson Fittipaldi passou três horas ao vivo no “Esporte Espetacular”, domingo. Foi a todos os programas possíveis da Globo e da Sportv. Deu centenas de entrevistas a jornais, revistas, emissoras de rádio, sites e blogs. Nunca apareceu tanto, como promotor da prova e como protagonista de uma efeméride das mais importantes: os 40 anos do primeiro título mundial do Brasil na F-1, dele mesmo.

O cenário não poderia ser melhor. Emerson falando o tempo todo de sua corrida para milhões de pessoas através da mídia, preços de ingressos razoáveis, grandes atrações na pista, um brasileiro, Lucas di Grassi, escalado para correr na Audi, a favorita à vitória. Dá para explicar por que ninguém veio a Interlagos?

Dá. E a corrida de hoje deve servir como o último pedido de socorro do automobilismo no Brasil. As pessoas que vivem de automobilismo aqui — dirigentes, pilotos, mecânicos, chefes de equipe, autoridades esportivas, jornalistas, promotores, patrocinadores, organizadores — precisam assumir: ninguém mais liga para esta merda.

Não fiquem zangados. É preciso ser humilde, agora. Essa gente toda (incluo-me; portanto não me encham o saco) tem de entender que o tanto que gostamos desse negócio é inversamente proporcional à quantidade de gente que gosta como a gente. O automobilismo, nos últimos anos, cresceu apenas nos custos. E foi se distanciando do gosto popular. Das pessoas. Dos fãs. O automobilismo, hoje, desperta apenas indiferença. Que é o pior dos mundos. Ninguém odeia o automobilismo. As pessoas são apenas indiferentes a ele.

O mundo das corridas é rico. Rico porque quem o pratica precisa gastar muito dinheiro para fazer com que ele exista. Mas é feito por ricos e para ricos. Virou um nicho. E além de exigir muito investimento em equipamento e tecnologia, também precisa de grandes espaços, arenas enormes e caras, de manutenção difícil, quase inviável, e rentabilidade baixa. O mundo do automobilismo é um contra-senso. Ninguém gosta, não atrai público, vive de trocas de favores e de “marketing de relacionamento”, não tem nenhuma importância, movimenta fortunas e depende da boa-vontade do poder público. É difícil acreditar que ainda não tenha sido extinto.

Se uma corrida como essa aqui é incapaz de colocar 20 mil pessoas em Interlagos, é porque, realmente, chegou-se a um ponto-limite. Está na hora de parar para entender o que está acontecendo. Dispensando, por favor, os discursos mais fáceis e óbvios — as pessoas têm mais opções de lazer, a TV a cabo, os parques, os patinetes, as bicicletas, o Domingão do Faustão, o iPad, o smartphone, a putaquepariu.

Não é nada disso. Nada disso. O lazer das pessoas e seus interesses estão em permanente mutação. No período em que o automobilismo foi mais popular no Brasil, estavam surgindo a TV a cores, depois os computadores pessoais, as novas modalidades esportivas, as revistas de mulher pelada, os festivais de rock, a música sertaneja e o caralho a quatro. Concorrência sempre houve entre tudo e todos.

Não é o surgimento de algo específico, sei lá, como o Michel Teló, que explica a morte do automobilismo.

Sim, morte. Porque quando se vê mais ou menos no mesmo momento histórico o fim de um autódromo como Jacarepaguá, a extinção das categorias de base, a irrelevância do kart, a transformação de campeonatos de turismo com enorme variedade de modelos em torneios monomarca fechados ao público, a estiagem de pilotos em categorias de ponta, um de seus maiores jejuns de pódios e vitórias na F-1, a inexistência de ídolos, a pobreza técnica daquela que se imagina a principal categoria do país, é porque este negócio morreu.

O deserto de almas hoje em Interlagos é prova disso. Ninguém deve se contentar com as migalhas. “Ah, vai, até que tinha bastante gente…”, dirá alguém. Não tinha. “Ah, o Setor A estava cheio!”. Não estava. As pessoas precisam parar de se enganar. Assumir que acabou e é preciso começar de novo. Compreender que na origem de tudo está a relação homem-automóvel. O que o carro significava para o jovem antes — liberdade para ir e vir, escolher seus caminhos, viajar, descobrir coisas, trepar no banco de trás, sair rumo ao desconhecido — e o que significa hoje — prisão ambulante, ameaça de assalto, alvo de radares e agentes de trânsito, despesa de estacionamento, IPVA, seguro e gasolina. É preciso ser honesto e, de novo, humilde. Aceitar que o que a gente acha legal demais, para a imensa maioria das pessoas é um nada absoluto. O que era um motivo de orgulho, um objeto de desejo e paixão, é hoje um estorvo.

Esta semana, participei de um negócio chamado Desafio Intermodal em São Paulo. Várias pessoas sairiam às 18h do mesmo ponto, uma praça na Zona Sul da cidade, para ir até a Prefeitura, no Centro. Cada uma de um jeito: correndo a pé, de bicicleta, skate, ônibus, metrô & trem, patins, bicicleta de mão, helicóptero, caminhando, de cadeira-de-rodas, camicleta, muleta, patinete, moto, lombo de jegue e sei lá mais o quê. Eu fui escalado para ir de carro. Cheguei em penúltimo. Cumpri o trajeto em 1h41min. A menina que foi a pé caminhando chegou um minuto depois. Ganhou o cara do helicóptero, com 22 minutos. A bicicleta chegou logo depois.

Errei uma saída, me fodi no trânsito, poderia ter chegado em mais ou menos 1h15min se escolhesse um caminho convencional, mas tentei fugir dos congestionamentos e tomei na tarraqueta. Foda-se, não era uma corrida, não queria ganhar de ninguém, e jamais seria burro o bastante para ir de carro ao centro da cidade naquele horário. Fiz apenas para participar daquele negócio, me pediram. Mas notei, quando me apresentei à chefia para registrar meu tempo, que todos os ciclistas, skatistas, patinadores, corredores, andarilhos, cadeirantes, peregrinos, amputados, aviadores, eunucos e eco-malas em geral olhavam para mim como se eu fosse o maior otário do planeta. Riam com nojo e desprezo e me miravam como se estivessem diante de um bobo-da-corte abjeto e decadente. Notei que aquela molecada toda me tinha por uma peça de museu empoeirada cheia de ácaros, hostil ao meio-ambiente, um vilão purulento, um pária, responsável pela destruição da camada de ozônio, o inimigo número 1 dos micos-leões, das ariranhas, das capivaras e das formigas-de-rabo-vermelho. Caguei para as formigas, quero que pegue fogo no rabo delas, e por mim as capivaras podem, todas juntas, ir à puta que pariu junto com as ariranhas, os pandas, os gnus e os gatos persas.

Tive ganas de subir num caixote e desafiar todos eles a alinharem comigo com suas bicicletas de titânio do caralho, ou com seus patins da puta que o pariu, ou com seus tênis Nike com amortecedor para ver se seriam capazes de chegar na frente do meu carro, qualquer carro meu, numa competição direta e reta numa pista de verdade. Pensei em perguntar àqueles babacas todos se quando eles vão para Maresias encher a cara de vodca com energético na balada, ou para Brotas descer uma corredeira e fumar maconha, vão a pé, de bicicleta, asa-delta ou de patinetes. Se podem abrir mão do carro em suas vidas. Se deixariam o conforto do ar-condicionado e do motor a explosão que os move para descer a serra de skate.

Mas é o mesmo sentimento que a molecada tinha em relação a mim. A garota que chegou a pé um minuto depois do meu carro estava puta e inconformada, queria ter ganhado de mim, queria que meu carro perdesse de todo mundo, fosse humilhado e esmagado. Ela tinha pelo meu carro o mesmo desprezo que eu tenho pelas ararinhas azuis e pelas trilhas no meio do mato, queria que eu e todos meus carros fôssemos à puta que pariu. Eu era, para ela, o passado e o culpado pelo fato de o planeta ao qual ela chegou vinte anos depois de minha simpática e doce pessoa ser uma latrina. Bem, eu quero que ela se foda, se a menina acha legal andar 15 km a pé no meio da cidade para ir de um ponto a outro, que ande. O mesmo ela deve pensar de mim, se esse babaca quer poluir o ar com seu monte de lata velha e ficar uma hora e meia parado no trânsito respirando gás carbônico e correndo o risco de ser assaltado, que fique.

Ocorre que aos olhos dela e de muita gente, ela é o futuro. Eu, o passado. Ela, a vítima. Eu, o culpado.

É isso, meninos e meninas. Nós, que gostamos de carros, somos os atuais culpados. É preciso começar a discutir a morte do automobilismo a partir daí, da vilania à qual o automóvel foi relegado. Compreender o que está acontecendo e pensar no que pode ser feito.

Um comentário:

Igor * @fizomeu disse...

triste ver essas arquibancadas vazias assim...