* Por Lívio Oricchio
Por volta das 10 horas da manhã do domingo da prova de Mônaco, dia 26 de maio, vários grupos de técnicos, dirigentes, jornalistas e até pilotos se formaram para discutir a notícia que reverberou com intensidade no paddock. No começo, nem todos acreditaram.
Ficamos sabendo que a Mercedes realizou três dias de testes, mil quilômetros, para a Pirelli, no Circuito da Catalunha, entre os dias 15 e 17 de maio, logo depois da corrida de Barcelona, dia 12.
Os testes são proibidos na Fórmula 1, exceto os coletivos da pré-temporada e os destinados a jovens pilotos depois da última etapa. A proibição é o resultado de um acordo entre os responsáveis pelas equipes. O presidente da FIA, Jean Todt, é contra. Já expressou várias vezes sua reprovação ao acordo, definido para reduzir os custos.
Mas o episódio do teste da Mercedes já teve o primeiro desdobramento: os testes durante o campeonato voltarão a ser realizados. Numa reunião ocorrida no domingo de manhã antes da largada do GP do Canadá, dia 9, foi estabelecido que em 2014 haverá quatro sessões de dois dias de testes cada.
Quinta-feira, em Paris, o Tribunal Internacional da FIA (TI) vai julgar a acusação formal que Red Bull e Ferrari fizeram contra Mercedes. E a entidade decidiu colocar no banco dos réus a Pirelli também.
Há muitas perguntas no ar envolvendo todo esse imbróglio. Baseado no que ouvi dos envolvidos e outros profissionais da Fórmula 1, em Mônaco e no Canadá, bem como li na mídia internacional desde que o escândalo surgiu, mais a minha percepção pessoal, relaciono aqui os dez aspectos mais relevantes do caso e procuro, ao mesmo tempo, contextualizá-los, a fim de servir de subsídio para entendermos o que pode acontecer em Paris.
1. Se testar é proibido na Fórmula 1 e a Mercedes realizou um teste, então não há muito o que discutir, certo?
Errado. A Pirelli usa nos seus testes o modelo de 2010 da então Renault e depois das quatro primeiras etapas do campeonato deste ano descobriu que as solicitações dos pneus nos carros atuais são maiores das que geraram a concepção e produção dos pneus desta temporada.
O uso do modelo de 2010 foi uma imposição das escuderias, com receio de que se a Pirelli usasse um monoposto mais recente, a que o cederia seria privilegiada em razão de os pneus serem desenvolvidos a partir das características do chassi daquela equipe. Há até quem acredite que a maior adaptação do modelo atual da Lotus, E-21-Renault, aos pneus deste ano se relacione ao fato de a Pirelli utilizar o carro de 2010 da escuderia nos seus testes.
As dificuldades da Pirelli, agora, são maiores das que a empresa esperava. Em ocasiões especiais, como com Lewis Hamilton, da própria Mercedes, no GP de Bahrein, os pneus poderiam até mesmo soltar parte da camada de borracha da banda de rodagem. Quando a Bridgestone fornecia pneus para a Fórmula 1, de 1997 a 2010, os testes eram praticamente ilimitados e com os carros da temporada. O que não é o caso na Fórmula 1 desde 2010.
Mais: Paul Hembery, diretor da Pirelli, disse-me que além de ter de usar um modelo antigo, as temperaturas nos ensaios de pré-temporada são bem mais baixas das que a Fórmula 1 enfrenta durante o campeonato. “Temos de adivinhar qual vai ser a exigência dos nossos pneus, por causa do carro antigo e temperaturas baixas na pré-temporada, e ainda adivinhar qual o tipo de construção e tipo de borracha capaz de atender ao desejo do promotor do Mundial (Bernie Ecclestone), de as corridas apresentarem dois ou no máximo três pit stops. Se essa condição inaceitável para nós não mudar já para o ano que vem deveremos rever nossa opção pela Fórmula 1.”
As coisas começam a ser dúbias agora. A FIA distribuiu comunicado no domingo da corrida de Mônaco: “A Pirelli nos consultou sobre a possibilidade de realizar testes de desenvolvimento dos pneus utilizando um carro em uso no campeonato. No contrato que estabelece a relação entre a Pirelli e a FIA existe essa possibilidade de um teste de mil quilômetros com qualquer equipe”.
O pedido da Pirelli já deveria citar a Mercedes porque na sequência do seu comunicado a FIA diz: “Pirelli e Mercedes foram avisadas de que o mencionado teste para desenvolvimento de pneus poderia ser realizado, desde que fosse dada as demais escuderias a mesma oportunidade, a fim de garantir os mesmos direitos a todos”.
Repare que uma coisa é o artigo 22.1 do regulamento esportivo da Fórmula 1, que proíbe testes com os carros do ano e da temporada anterior, outra é a autorização escrita da FIA para a Pirelli e a Mercedes de que o teste poderia ser realizado, com o carro atual de Lewis Hamilton e Nico Rosberg. A única condição é extensão do ensaio aos outros times que desejassem realizá-lo também. Dá para ver como o tema é dúbio?
2. Quem na FIA autorizou o teste?
Provavelmente Charlie Whiting, o delegado de segurança, das questões técnicas, diretor de corrida e oficial de largadas. É possível, contudo, que diante da extensão do pedido, apesar de previsto em contrato, tenha consultado o presidente da FIA, Jean Todt.
3. A FIA sabia do teste?
É outra dúvida. Pelo comunicado de Mônaco, não. Veja: “Depois de responder o pedido da Pirelli, a FIA não recebeu nenhuma informação quanto ao teste com a Mercedes. Tampouco recebeu a confirmação de que foi dada a mesma oportunidade a todas as escuderias”.
Mas há quase um consenso na Fórmula 1 de que Charlie Whiting conversou com Ross Brawn, diretor técnico da Mercedes, antes do teste. Ross deve lhe ter perguntado se poderia mesmo realizar o teste. A amizade e relação de proximidade entre os dois é antiga. Portanto a FIA, segundos muitos, sabia do teste. Whiting é contratado da FIA.
A segurança de Brawn em decidir levar adiante a ideia do teste, altamente benéfica para a Mercedes, por ser, dentre as grandes, quem mais sofre com o desgaste prematuro dos pneus, decorre, essencialmente, da autorização de Whiting. O TI deve esclarecer também esse aspecto.
4. Como vejo o papel da FIA?
Decepcionante. O mesmo texto que enviou para a Pirelli e a Mercedes, autorizando o teste com os carros deste ano, solicitado pela fornecedora de pneus, deveria seguir para todos as equipes. Como escreveu a FIA, todos devem saber que agora dipõem de um novo direito: testar com os carros deste ano.
Representa uma mudança drástica de tudo o que se faz. Todos gostariam muito de testar, em especial com pneus de características altamente exigentes quanto ao acerto preciso do carro como os atuais.
5. Por que Hamilton e Rosberg não utilizaram seus capacetes no teste e como os demais profissionais souberam?
Foi um dos pecados da Mercedes. Se a sua defesa já estava montada para quando a notícia viria a público, fatalmente, a existência de uma autorização da FIA, não havia sentido esconder os pilotos. Essa decisão infantil reforçou a impressão de a equipe desejar esconder o teste. O que seria uma inocência.
No mesmo período, Hamilton colocou no ar mensagens no twitter como se nos dias do teste estivesse em Los Angeles, onde reside a namorada, a cantora pop havaiana Nicole Scherzinger.
Pelo que se comentou na Fórmula 1, foi o próprio Hamilton que falou do teste para Sebastian Vettel, na sexta-feira, em Mônaco, depois da tradicional reunião dos pilotos com Whiting. O tricampeão do mundo ouviu e, indignado, levou a questão para Christian Horner, diretor da Red Bull que, de imediato, procurou Whiting, questionando a veracidade do teste.
Stefano Domenicali, diretor da Ferrari, acabou sendo informado por Horner e também pediu esclarecimento a Whiting. É provável que Whiting tenha confirmado o teste a Horner que, na sequência, fez um protesto formal, em Mônaco.
6. A Ferrari também testou para a Pirelli. Por que não está sendo acusada?
A equipe italiana utilizou o carro de 2010, o modelo F10, no ensaio para a Pirelli, em Barcelona, nos dias 23 e 24 de abril, e não escalou Fernando Alonso e Felipe Massa, os pilotos titulares, mas Pedro de la Rosa. O artigo 22.1 especifica que teste com carro que não seja do ano e do campeonato anterior, conduzido por piloto não titular, não é proibido.
Renato Bisignane, assessor da Ferrari, disse-me, em Mônaco: “Esse teste que a Mercedes fez nos foi oferecido também, mas por sabermos não ser permitido usar o carro deste ano realizamos com o modelo de 2010″. Li que Horner agiu da mesma forma, recusou a possibilidade do teste “por ter assinado o acordo junto com Ross Brawn e os demais representantes das equipes” sobre não utilizar monopostos do ano e da temporada anterior.
7. O que diz a Pirelli sobre o ocorrido?
Fiz pessoalmente a pergunta a Paul Hembery, diretor da empresa. “Necessitávamos do teste com carro deste ano. Solicitamos à FIA e recebemos o ok. Sobre oferecer o teste aos outros times, é só nos contatarem para agendar. Temos interesse nesses testes, como creio que esses times também.”
Mas me pergunto se não teria valido a pena, até para tirar de si qualquer desconfiança sobre preferências que poderia surgir, ter divulgado que faria o teste com a Mercedes e quem desejasse testar bastaria apenas acertar a data. A Pirelli estava respaldada pela autorização da FIA. Teria poupado a empresa desse desgaste, agora, de ter de se explicar ao TI.
8. Por qual razão a FIA decidiu levar a questão para o seu TI pela primeira vez na história?
Por que os comissários desportivos do GP de Mônaco, para quem a Red Bull endereçou o protesto – a Ferrai o fez mais tarde diretamente à FIA – concluíram que não seriam os mais indicados para julgar se o teste da Mercedes foi legal ou não. Repassaram o caso para a FIA. E a entidade criou em 2010, depois do escândalo de espionagem da McLaren, contra a Ferrari, o TI para julgar casos de indisciplina. A McLaren foi julgada, em 2007, pelo Conselho Mundial da FIA, o que é bem diferente do TI. As decisões do Conselho são mais políticas que técnicas.
O TI é formado por 12 advogados renomados, recomendados pelo Comitê de Nominação Judicial da FIA e eleitos na Assembleia Geral da entidade. O TI tem um presidente que designa três membros, de nacionalidade distinta dos envolvidos no julgamento, para cada caso. Importante: cabe recurso no caso de condenação.
Ross Brawn e os dois sócios e diretores da Mercedes, Niki Lauda e Toto Wolff, curiosamente nenhum alemão, são austríacos, vão se apegar no julgamento à autorização emitida pela FIA e, com boa probabilidade, o fato de Whiting saber do teste. Mesmo argumento da Pirelli. Contra eles vai estar o artigo 22, que proíbe testes durante o campeonato, assinado por todos os times, dentre eles a Mercedes.
9. Quais as penas possíveis se tivermos condenados?
A Pirelli não é concorrente. Se considerarem que não agiu como a FIA orientou, estender o teste a todas as equipes, apesar das frequentes declarações de seu diretor, de que espera as requisições dos interessados, pode ser advertida. Talvez uma multa. No lado político, o presidente da FIA poder criar resistência para a renovação do seu contrato para 2014.
Mas quem vai concordar em produzir pneus para uma Fórmula 1 sem testes até o fim do ano, com um regulamento completamente distinto no ano que vem e tendo ainda de oferecer pneus com degradação precisa para dois pit stops, como impõe o promotor do Mundial, sendo que já estamos no fim de junho?
Resposta: muito difícil, a essa altura, encontrar outro fornecedor de pneus e que concorde com situação tão adversa. É preciso ter muita experiência para aceitar o desafio.
Dependendo do que acontecer em Paris, Hembery pode ser substituído.
A Mercedes, da mesma forma, pode ser advertida, multada, perder pontos no Mundial de Construtores, ser suspensa por um ou mais GPs e, num caso extremo, excluída do campeonato.
Como já escrevi antes, Brawn se sente respaldado pelo comunicado emitido pela FIA a Pirelli e ao seu time, autorizando o teste, com a provável anuência de Whiting, portanto da FIA. Mas se houver alguma punição, sua cabeça na Mercedes será a primeira a rolar, até porque já existe na boca do forno outro engenheiro capaz pronto para assumir a direção técnica da Mercedes, Paddy Lowe, ex-McLaren, e Brawn não é unanimidade no grupo.
Não podemos excluir a possibilidade de o próprio Whiting se desgastar com Todt e, a curto prazo, ser substituído. O francês não morre de amores pelo ex-mecânico da Brabham, elevado à categoria de um dos principais dirigentes da Fórmula 1 por Ecclestone.
Parece bem provável que quinta-feira, em Paris, fatos novos emergam dessa história e que até agora não conhecemos. Até mesmo relevantes.
10. O que acredito que vai ocorrer?
Não consigo imaginar uma punição severa para a Mercedes. Foi privilegiada pelo teste, inequivocamente, mas dispõe de um documento importante, a autorização da FIA.
Mas se eventualmente e contra as previsões a escuderia da montadora alemã for considerada culpada e a sentença for dura, é provável que os board members da empresa revejam os responsáveis pelo projeto de investir na Fórmula 1. Nesse caso nomes como Wolff e Lauda talvez tenham de deixar a organização, apesar de sócios da equipe. Para uma montadora da sua magnitude e imagem de excelência, seria desastroso para a Mercedes. A opinião pública na Europa tem uma força extraordinária. Mudar os líderes é uma forma de responder ao mercado.
Há um outro fator importante que me foi lembrado por um integrante com cargo de elevada responsabilidade num time de ponta: “Não existe hoje um código que nos conecte aos detentores dos direitos comerciais”.
Em outras palavras, o chamado Acordo da Concórdia, não está em vigor. Expirou no fim do ano passado. Ecclestone, representante do detentor dos direitos comerciais, o grupo de investimento de capital inglês CVC, e os homens que respondem pelas escuderias chegaram a um acordo sobre os valores a serem repassados, dentre tantos outros aspectos que o Acordo estabelece. Mas nem todos assinaram ainda.
“Os vínculos tornam-se mais tênues”, comentou comigo, maliciosamente, a fonte, como quem diz que isso estimulou também a Mercedes.